As forças armadas e as sociedades das quais estas se originam progridem graças ao espírito crítico constante que aponta defeitos e sugere melhorias para os problemas encontrados. É como se uma insatisfação incessável gerasse um sentimento coletivo de intolerância com o que deu errado ou não funcionou segundo as expectativas e planos. De maneira bem diferente de nossa tradição brasileira, as forças armadas de países como EUA e Inglaterra têm por hábito a revisão crítica minuciosa de seu passado militar, seja nas escolas nacionais de estado maior seja nos inúmeros cursos acadêmicos de história militar já consolidados. E depois os americanos é que são triunfalistas…
“Os grandes capitães” do passado militar americano não gozam de admiração unânime entre historiadores nos EUA. Na historiografia disponível, o General Patton surge tanto como um comandante tirânico motivado pelas manchetes de jornais quanto como um muito eficaz general combatente que graças à sua iniciativa de ofensiva constante pôde encurtar a guerra em alguns meses e economizar vidas de soldados americanos. Patton pode ser lembrado como um contraponto aos comandantes que continuavam insistindo em batalhas de atrito como a da floresta de Hurtgen, cujo custo em baixas atingiu 33.000 americanos.
Uma das mais célebres preocupações voltadas para a resolução de problemas práticos apontados durante a Segunda Guerra Mundial surgiu quando o Coronel S.L.A. Marshall publicou seu livro Men Against Fire logo após o final do conflito. Alegando ter entrevistado cerca de 100.000 combatentes de infantaria nas imediações das linhas de frente, Marshall publicou as alarmantes conclusões de sua pesquisa: nas situações de combate, apenas 15% dos homens das companhias de fuzileiros disparavam suas armas. A porcentagem era semelhante em todas as divisões de infantaria pesquisadas, e a única exceção era constituída por unidades de elite como os pára-quedistas: nestas, a porcentagem de homens que chegaram a disparar seus fuzis alcançava 30%, mas mesmo assim essa quantidade permanecia grotescamente abaixo do grau de agressividade esperado dos soldados. O que estaria errado? O treinamento? A motivação moral para a guerra? O armamento? A explicação genérica de Marshall é que os homens deixavam de disparar em combate pois a maioria se encontrava arrebatada pelo medo.
Mas fosse qual fosse a resposta, as descobertas de Marshall causaram uma crise nos responsáveis pelo treinamento da Infanataria americana. Seu livro mais conhecido foi publicado no Brasil na década de 50 pela primeira vez. Uma nova edição de Homens ou Fogo foi novamente relançada pela Bibliex em 2003.
O problema é que desde o momento da publicação, uma série de historiadores americanos e veteranos da Segunda Guerra desconfiava que algo estava errado com as conclusões de Marshall. A “razão de fogo” inventada pelo autor simplesmente não correspondia à experiência individual vivida na guerra por vários de seus críticos, mas o coro de descontentes não chegou a surtir grande efeito. As sugestões de Marshall foram aplicadas e causaram uma revisão na condução da instrução de Infantaria nos EUA. Acredita-se que as alterações no treinamento sugeridas por Marshall tenham surtido efeito, pois constatou-se que na Guerra do Vietnã a taxa de homens que disparava seu armamento individual em combate havia atingido a porcentagem de 90%.
Quando Homens ou Fogo chegou às livrarias, as opiniões sobre Marshall e seus escritos causaram uma divisão nas forças armadas americanas. Parte do Exército seguia criteriosamente seus conselhos e graças a esse prestígio Marshall continuou sua carreira servindo em posições importantes. Outra parte continuava vendo o historiador com desconfiança e conferindo pouco crédito às conclusões de seu trabalho.
Foi somente no ano de 1988 que uma revisão metodológica das pesquisas de Marshall e sua documentação acabou fazendo com que Homens ou Fogo perdesse a respeitabilidade. Na época, Roger J. Spiller, então professor do Combat Studies Institute avaliou a coleção documental de Marshall e percebeu que entre o material conservado em seus arquivos pessoais as estatísticas apresentadas em Homens ou Fogo não constavam dos questionários oferecidos aos soldados de infantaria entrevistados. Spiller também observou que Marshall afirmava ter entrevistado integrantes de 400 companhias de fuzileiros em sua totalidade, mas que os questionários preservados no arquivo estavam bastante distantes desse número (durante a Segunda Guerra, cada companhia de fuzileiros tinha 183 homens na organização americana) e um dos principais colaboradores da equipe de Marshall, John Westover, não se lembrava de tê-lo visto fazendo a pergunta se um homem teria ou não disparado seu fuzil em ação.
Spiller argumenta que as alegações de Marshall sobre a “razão de fogo” e as porcentagens citadas não estavam amparadas em base empírica. Na melhor das hipóteses, as conclusões de Marshall não passaram de pura invenção motivada pela intuição, colocando o autor numa fronteira tênue entre a má produção histórica e o charlatanismo.
Mas por mais incrível que isso possa parecer, as inovações no treinamento sugeridas a partir da falta de agressividade supostamente detectada por Marshall resultariam na altíssima porcentagem de 90% de homens que haviam disparado suas armas, número aferido no Vietnã por um processo metodológico devidamente registrado e documentado. Entretanto, a supresa perante a aparente superior agressividade da infantaria do tempo do Vietnã pode estar calcada em um problema falso: não há nenhuma possibilidade de certeza em afirmar que o aumento da “razão de fogo” foi significativo, uma vez que as baixas porcentagens apresentadas por Marshall provavelmente estavam aquém da realidade.
Marshall não foi o único historiador descrente da eficácia do sistema americano dentro do US Army. A eficiente resistência apresentada pelos alemães em vários teatros de operações ainda causava desconforto em alguns setores do Exército. Em 1979, o coronel Trevor N. Dupuy publicou Numbers, Prediction and War: using history to evaluate combat factors and predict the outcome of battles.
A partir de 65 embates entre o Exército Americano e os alemães no Teatro de Operações da Itália, Dupuy observou que a necessidade do lado aliado era de constante superioridade numérica conjugada com pesados bombardeios preparatórios de modo a proporcionar a vitória no combate. Dupuy passou então a analisar as baixas americanas, geralmente altas, em comparação com o número ínfimo de baixas sofrido pelos alemães nos combates escolhidos como estudos de caso. Somada à necessidade de superioridade numérica e material, a discrepância de resultados e custo das operações apontava para um quadro de ineficácia militar americana.
As críticas ao trabalho de Dupuy não demoraram a surgir. Dentre as amostras de combates utilizadas no livro, a maioria era configurada pela conquista de posições elevadas defendidas pelos alemães. Logicamente, para que operações do tipo obtenham sucesso as preparações de artilharia e a superioridade numérica tornavam-se indispensáveis. O quadro não era portanto tão desairoso para a boa imagem da condução americana da guerra, já que havia um desequilíbrio de condições intrínseco nas situações estudadas. A refutação dos argumentos de Dupuy foi além: e daí se os americanos fiavam-se na preparação de artilharia? Era apenas sorte deles se o potencial industrial do país permitia que vidas de soldados fossem poupadas graças ao elevado dispêndio de munição. A defesa do sistema militar americano foi uma reafirmação da mentalidade posta em prática durante a guerra: um canhão pode ser feito em vinte minutos, mas um homem só pode ser feito em vinte anos. Gastem-se os canhões, poupem-se os homens.
Por anos consecutivos, trabalhos como os de Dupuy e Marshall embasaram críticas ácidas ao Exército Americano. O historiador militar israelense Martin van Creveld também participou do debate com seu livro Fighting Power, lançado em 1982.
O trabalho de Dupuy seguramente foi elaborado com mais seriedade que o de Marshall. Resta, contudo, uma contradição: sua obra desqualificava um tipo de organização militar que afinal, havia sido vitorioso frente ao exército que consideravam como o mais eficiente da Segunda Guerra Mundial.
Os próprios historiadores do Exército Americano, como Peter Mansoor e Michael Doubler, produziram nos anos 90 sólidas obras de refutação das críticas à condução da guerra pelo Exército, baseadas em detalhadas análises dos processos de treinamento e emprego em linha das divisões empenhadas no noroeste da Europa. Sempre, desde os momentos mais graves de crise nas linhas de frente, a preocupação com a erradicação dos problemas e inadequações de treinamento estiveram presentes, como mostram inúmeros casos de rápida adaptação à realidade do combate que estava em constante mudança, como mostram Doubler e Mansoor. Esse progresso substancial do conhecimento sobre o desempenho americano na Segunda Guerra só é produzido pela infindável revisão dos consensos historiográficos, um produto tão legítimo da consciência crítica permanente como os trabalhos de Dupuy e Marshall, que afinal foram responsáveis por um dos mais vigorosos debates sobre a eficácia de combate dos exércitos aliados durante o conflito.